14/09/2009

A genialidade de Edgar Cardoso

Edgar António de Mesquita Cardoso nasceu no Porto a 11 de Maio de 1913, no 1º piso do nº 245 da Rua Pinto Bessa (Bonfim). A sua formação em Engenharia Civil, concluida em 1937, foi realizada na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP).

Ainda a frequentar a FEUP, realiza o seu primeiro estágio, sob a orientação do Engº Gervásio Leite,  destinado a estudar o assoreamento do Porto de Leixões. O estudo então apresentado era ilustrado com desenhos à mão livre de muito boa qualidade. Do seu conteúdo fazia parte uma introdução deveras reveladora da sua personalidade e
impensável nos nossos dias:

"Segundo instruções da nossa Faculdade de Engenharia a que pertenço como modesto aluno e vós Meus Mestres, como Professores altamente categorizados, recebi com agrado no dia 5 de Agosto a guia de apresentação para na Administração dos Portos do Douro e Leixões efectuar o meu primeiro estágio. Sem a experiência e o saber tão precisos ao Engenheiro, iniciei nesse mesmo dia o meu primeiro trabalho que apesar da atenção e da boa vontade, sempre aplicada para a sua perfeita execução, terá fatalmente que ser defeituoso. Peço portanto aos meus Exmos Professores que me revelem os erros cometidos, na certeza, porém, que a sua existência não é resultante da falta de assiduidade, nem da minha menos curiosidade de saber, mas antes da inexperiência e limitados conhecimentos do assunto que me foi dado estudar. Leixões, Outubro de 1935.".


A beleza da arquitectura aliada às soluções de engenharia da Ponte da Arrábida sobre o Rio Douro (Porto)

A Ponte da Arrabádia, porventura o seu projecto mais emblemático, foi construída entre 1957 e 1963. Destinada a vencer um vão de 270m entre as duas margens do rio Douro, foi executada por intermédio de um tabuleiro suportado por dois arcos gémeos ocos em betão armado com 8m de largura cada, com uma flecha de 52m, contraventados longitudinal e transversalmente. No dia da inauguração, acto presidido pelo Almirante Américo Tomáz, reuniram-se nas margens do Douro numerosos jornalistas dos mais diversos países para assistir ao retirar do cimbre do arco da ponte e, supostamente, à queda daquele que na época seria conhecido como o maior arco do mundo em betão armado. Arco esse que ainda se mantém intacto 46 anos depois!



Ponte de Mosteirô sobre o Rio Douro

Após o 25 de Abril de 1974, seria saneado do Instituto Superio Técnico (IST), onde era docente, por ter projectado a Ponte da Arrábida para o anterior regime fascista. Readmitido posteriormente a 1979, continuaria a leccionar até à sua aposentação. Na altura da sua reintegração no IST foi ressarcido das remunerações devidas no valor de um milhão de escudos, dinheiro que doou ao Estado para actividades de interesse nacional. O governo de então usaria esta verba para instituir a Fundação Edgar Cardoso com o intuito de conceber bolsas de estudo a alunos e doutorados do IST e atribuir prémios a trabalhos de investigação ou projectos de engenharia na área de Pontes e Estruturas Especiais.


Projecto de uma obra nunca relizadada: o alargamento do tabuleiro da Ponte D. Luis (Porto)

A construção dos modelos das suas estruturas através de um extraordinário engenho e de uma fantástica habilidade manual e as medições dos parâmetros necessários à avaliação estrutural através de aparelhos inventados por si, contribuiram para a sua singularidade profissional por intermédio dos métodos sui generis de resolver as questões. Esta era considerada uma das suas facetas mais características. Para ele, as estruturas projectavam-se usando as mãos, experimentando, ensaiando diversas formas em modelo. E desdenhava dos grandes rivais, os computadores, e da análise matricial afirmando: "Dizem que há por aí quem use umas meretrizes...".



Projecto de uma ponte ferroviária para o Porto, que nunca foi construida, utilizando o cimbre da Ponte da Arrábida

As histórias da sua vida profissional, sempre vincadas pela sua forte personalidade, contam-se hoje como deliciosos momentos de confraternização com os engenheiros mais novos. Certo dia, depois de uma visita às obras da ponte de S. João, um colega teve a sorte de almoçar ao seu lado. Às tantas perguntou-lhe: " - Como é que você media as deformações que uma ponte vai sofrendo sem sair de cima dela?"
Vendo a sua atrapalhação na resolução da questão, pega num guardanapo de papel, e explica: " - Você deita uma pedra ao rio com um fio de ínvar amarrado (ínvar é uma liga com um coeficiente de dilatação linear quase nulo. As medidas fazem-se portanto sem influência da variação da temperatura, ou seja, menos uma variante no sistema!). " - Mantém o fio esticado com uma mola que pode estar presa à própria ponte e mede agora o deslocamento relativo entre a extremidade do fio e uma marca na ponte." E continuou: " - E por falar em ínvar, você sabe como eu faço ínvar? Pois com dois fios de coeficientes de dilatação linear diferente amarrados a uma pequena travessa. É assim possível determinar um ponto no prolongamento da travessa que não sofre qualquer movimento em presença da variação de temperatura.".



Construção da Ponte de Santa Clara sobre o Rio Mondego, em Coimbra (a montante, a ponte existente à data da construção da nova ponte)

Verdadeiramente genial como engenheiro, o seu feitio de difícil trato trouxe-lhe algumas inimizades, sobretudo entre colegas cujas opiniões nem sempre eram bem aceites. Ciente da sua indiscutível sapiência, facilmente se envolvia em polémicas que ultrapassavam o limite da razoabilidade. Numa reunião de obra durante a construção da Ponte da Figueira da Foz, hoje Ponte Engenheiro Edgar Cardoso, um jovem engenheiro terá sugerido uma qualquer alteração a uma indicação do Professor. A sua resposta foi demolidora: " - Ó meu amigo! Em Portugal só há uma pessoa de quem aceito sugestões: O Prof. Joaquim Sarmento da FEUP!"

Apesar da sua idade avançada e da sua competência, nem sempre foi devidamente tratado pelos orgãos de comunicação social em Portugal. O carrocel mediático bateu-lhe à porta por diversas vezes de tal forma que não teve qualquer tipo de ressentimento em demonstrar o seu desprezo por alguns jornalistas ávidos de sensacionalismo. Uma dessas vezes aconteceu durante uma peritagem à pala do Estádio José de Alvalade. Corria o boato (não é possível chamar-lhe outra coisa) lançado por um iluminado (ou iluminados) que, supostamente, a pala encontrar-se-ia em risco de colapso devido à degradação da sua estrutura. Depois de uma atenta análise à mesma, o Professor não teve qualquer tipo de problema em colocar-se na sua face superior afirmando que "quem firmou que a pala iria cair devia pensar duas vezes porque era bem provável que essa pessoa (ou pessoas) poderiam morrer de velhice antes da ocorrência desse acontecimento!".

Outra história que as televisões exploraram até ao limite do razoável reporta-se à altura da construção da Ponte de S. João, no Porto, obra com alguns problemas relativamente à decisão política da sua construção. Na sua elevada complexidade técnica podemos encontrar o motivo para o derrapamento financeiro do projecto e para os adiamentos da sua conclusão. Conforme na altura foi descrito pelo Engenheiro Edgar Cardoso, a dissipação dos esforços transmitidos à estrutura das composições ferroviárias circulantes condicionava fortemente a forma dos pilares de suporte do tabuleiro. Assim, o Professor com base na sua experiência "esculpiu" a forma dos pilares em cenouras antes de se proceder ao seu cálculo estrutural. Este pormenor delicioso aliado à sua idade avançada e aos sucessivos adiamentos do fim da construção (na altura comentava-se que se o Engenheiro porventura morresse seria extremamente difícil, devido aos seus métodos de cálculo, encontrar um técnico capaz de prosseguir os cálculos estruturais da ponte de forma a finalizar a sua construção), seria ´"perseguido" pelos jornalistas de tal forma que numa dessas vezes diria para um canal de televisão "agora não me chateiem mais que vou mijar!".
E ela aí está em toda a sua exuberante elegância.



A elegância da Ponte de S. João (Porto)

Da sua obra salientam-se as suas poéticas e distintas pontes, esculturas de uma vida ligada à arte de projectar, inovadoras e imponentes. Os seus projectos, fruto da sua impressionante capacidade inventiva e intuitiva, colocaram-no como um dos maiores divulgadores do betão armado e pré-esforçado no mundo. Em 1990, o seu curriculum referia cerca de 500 estudos e projectos de pontes e estruturas especiais (pontes, pontes-cais, aeroportos sobre o mar, consolidação de muros de suporte...).
Com o seu falecimento a 5 de Julho de 2000, assistimos ao desaparecimento de um dos maiores génios da história da engenharia civil nacional e internacional. De um homem que vivia a engenharia como o seu desígnio de vida. Com uma curosidade sem limites!

Para quando o devido reconhecimento do Engenheiro e do Homem no nosso país?

E, tal como ele tantas vezes afirmava, "O engenheiro não é o técnico que sabe tudo... é o homem que tem engenho!"

Artur Mesquita

Fontes consultadas
"Edgar Cardoso, engenheiro civil", Luis Lousada Soares, FEUP, Edição 2004
"Manuel de Azeredo, Porto, http://paginas.fe.up.pt/ "
"Antigos Estudantes Ilustres da Universidade do Porto, http://sigarra.up.pt/ "

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